terça-feira, 10 de maio de 2011

O Monstro dos Agrafos - Manuela Costa Ribeiro

Escritora Manuela Costa Ribeiro



Imagem de Raúl Gomes



Ao Raúl Gomes

Raúl sonhava todas as noites com o mesmo monstro. Tinha pesadelos. Sentia-o entrar pela janela do quarto e estender os braços na sua direcção. Eram uns braços longos e grossos. Pareciam quase os ramos de uma árvore secular. Ramos presos a um tronco imenso que ficava do lado de fora da janela. Os dedos longos e finos, brancos e frios. Pareciam feitos de neve, mas não se desfaziam embora fossem gelados. Ou era Raúl que gelava de medo e acordava em sobressaltos.

Por isso, todas as noites, quando chegava a hora de deitar, Raúl ia tentando prolongar a sua presença na sala. Enchia a mãe e o pai de perguntas. Tinha sempre mais um exercício para resolver. Eram infindáveis os trabalhos de casa. Nunca se dedicara tanto aos estudos. E nunca tinha sono. Olhava em todas as direcções. O seu olhar atento percorria todas as janelas. E finalmente, quando a mãe insistia:

- Raúl, vá lá, dormir! Anda lá, que te conto uma história. Amanhã tens aulas.

Lá vinha o mesmo pedido:

- Mãe, pai, posso dormir no vosso quarto? Por favor?!

Raúl só pensava em esconder-se nos lençóis da cama dos pais e sentir-se seguro entre os dois. Assim, protegido dos dedos de chumbo do mafarrico, que, sabia, viria assombrá-lo, uma vez mais. E insistia:

- Por favooooor!? Prometo que não dou pontapés! Durmo sem me mexer. Prometo!

- Vá lá, Raúl, então? Tu és um rapaz forte. Não tens medo de um monstrinho qualquer, não é? Vais ver que esta noite ele foi brincar com outro menino!, dizia o pai, tentando desvalorizar a situação, mas visivelmente preocupado.

Todas as noites, os pais deitavam-se com esperança de que estes episódios terminassem a qualquer momento. Todas as noites, porém, a mãe corria em socorro de Raúl, que acordava aos gritos, com os olhos sufocados de lágrimas.

Raúl sonhava repetidamente o mesmo sonho ruim, com o mesmo monstro dos agrafos. Parecia quase um fantasma, terrivelmente grande e desajeitado, vestido de branco, de um branco mais branco que o branco do sabão com que a mãe o lava antes de ir dormir. De um branco mais branco do que a branca espuma que lhe sobra dos lábios quando escova os dentes. Por cima do fato cor de algodão, uma capa do mesmo tom, debruada de agrafos de cinza. Não conseguiu nunca vê-lo por inteiro. Mas pelo tamanho dos dedos, das mãos, dos braços, só podia ser um mostrengo. O monstro dos agrafos. Era assim que lhe chamava. Só lhe vira os olhos uma única vez. De um vermelho-fogo. A espreitar por entre a brancura das vestes.

Sempre que Raúl acordava em altos berros, o gigante desaparecia, por trás de uma nuvem de fumo quase transparente e ninguém dava por nada. Aquele horrendo espantaraúl nunca foi visto por mais ninguém.

Os pais, cada vez mais atentos e preocupados, mesmo querendo acreditar que se tratava de uma fase passageira, começavam a desesperar em busca de explicações e chegaram mesmo a marcar consulta no psicólogo.

Por trás do musgo das árvores mais antigas do Monte, à medida que o tempo ia passando, Agrafítico, no seu esconderijo triste de plantas verdes de grande porte, sentia-se cada vez mais só. A família não havia maneira de conseguir explicar-lhe que há muito não havia qualquer contacto entre humanos e agrafos.

Há séculos que tinham deixado de conviver. Desde aquele dia em que um incêndio destruiu a floresta e obrigou os titãs a deixarem a sua toca escondida por entre a vegetação das montanhas. Há muitos e muitos anos. Tantos que já nenhum homem se lembrava. Tantos que, na comunidade dos Agrafos, nem o Avô Agrafútico, nem a avó Agrafética tinham qualquer memória. Tantos que só o mais velho, Agrafeolítico, se recordava. Por sorte e por mágica, não morreram todos naquele rasto de fogo e de humilhação.

Aí ficaram em suspenso os longos tempos de sã convivência e amizade.

Agrafítico é que não se deixava convencer. E mais: acreditava que só uma aproximação aos humanos seria a solução para que os Agrafos não se extinguissem. Não desaparecessem de vez da face da terra.

Agora que ele e o que restava do seu clã tinham conseguido regressar ao mesmo bosque de antes e tinham recuperado a sua gigantesca caverna, no Monte de Sta. Luzia, tinha de ter confiança. Estava farto ser de filho único e a única criança da aldeia. Zangava-se.

- Mamagráfica, assim nunca vou ter amigos com quem brincar! Só eles é que me restam! Ai! Brrrrrrr…

- Mas, Agrafítico, não vês que…

- É com os mais pequenos da aldeia, sim! Choramingava sem esconder uma grande raiva, tão grande como o seu grande corpo de adamastor.

Com passos apressados de birra, Agrafítico saiu em busca das magias e feitiços do mais velho, Agrafeolítico, que tudo sabe.

Ao chegar à clareira mais luminosa da floresta, onde ao meio-dia em ponto, todos os dias, a luz do sol se desfaz em salpicos de ideias livres, lá estava o mestre sentado em frente a uma grande fogueira sem labaredas e sem fumo. Com os olhos postos no seu caldeirão de poções vazias, mexia e remexia com uma colher de pau de cabo comprido, lenta, muito lenta, e sábia, muito sábia.

E sem que Agrafítico tivesse tido sequer tempo de soltar um ai, já o mais velho, Agrafiolítico, olhos-nos-olhos do gigante petiz, muito pausadamente, como quem soletra palavras sonâmbulas, aconselhou:

- A fé nun-ca per-cas! Ve-jo tu-do no qua-dro bran-co em luz des-fei-ta no es-pe-lho do ou-tro la-do da lu-a.

Depois parou. Concentrado. Levantou a cabeça e projectou os olhos na direcção do Lima. Percorreu, com a sua visão perspicaz e atenta, as águas perdidas no labirinto do estuário. E ali, no rio, fixou o brilho intenso do seu olhar de sabedoria. No exacto lugar onde seivas que escorriam de fontes e nascentes, recolhidas pelo leito doce do rio, alimentavam milhares de vidas minúsculas. No exacto lugar onde o sal das ondas salgadas fertilizava as terras. Ali, observou, com toda a atenção, o céu reflectido na transparência da foz. Como se, ali, estivesse todo o conhecimento. Como se, dali, viesse a resposta para todos os mistérios. E profetizou:

- No-vos a-gra-fos es-tão pa-ra vir! E a-mi-gos. Mui-tos a-mi-gos. A-le-gri-a. Fe-li-ci-da-de. É i-sso que re-ve-la o li-vro sa-gra-do dos a-gra-fos an-ti-gos!

Ah-ah-ah-ah-ah-ah!

Levantou a voz e içou os grandes mastros dos braços, deixando-os cair, de repente.

Crac-crac-crac. Craaaaaaaac. A montanha estremeceu.

Depois sentou-se, cansado. O mais velho, Agrafeolítico, era mesmo muito velho. As barbas brancas arrastavam pelo chão, tão compridas quanto o seu cabelo branco, mais branco do que o branco do gelo preso nos picos mais altos.

Agrafítico, mais certo do que a certeza de estar a fazer a coisa certa, perseguia a sua agrafítica aventura. Muito depois de o sol se pôr e com a cumplicidade da lua cheia que o escondia por entre os seus traços riscados de luz, visitava Raúl. Ficava horas a vê-lo dormir. A observá-lo. A estudar os seus gestos, as suas expressões. Sorria com os sonhos felizes de Raúl e, mesmo sem querer, era o seu pior pesadelo. Embora o que quisesse fosse, afinal, brincar com Raúl e com os seus companheiros, como uma criança da sua idade, apesar do seu grande tamanho. Mal tentava, contudo, entrar pela janela por onde só conseguia espreitar, mal ousava fazer um mimo a Raúl, já este gritava a bons pulmões: mãaaaaaaeeeeeee! e já a mãe corria em seu auxílio.

Agrafítico desaparecia, mais rápido do que uma bola de sabão desfiada no ar. E repetia em eco, de si para consigo, como quem precisa de repetir para acreditar, as palavras que tinha escutado de Agrafeolítico:

- A fé nun-ca per-cas! A fé nun-ca percas! A fé nun-ca per-cas!

Na manhã seguinte, de sol ou de chuva, à hora do recreio, era vê-lo, disfarçado nas nuvens, em delírio com as brincadeiras dos meninos. Imaginava-se a correr, a brincar às escondidas. Até a esconder-se atrás das árvores, no meio dos arbustos e nos campos de flores que rodeavam a escola. E, com a cabeça e com o corpo todo quase a cairem da nuvem onde estava abrigado, acompanhava os passos de Raúl e dos seus amigos a caminho do campo de futebol.

- Será que um dia poderei jogar à bola com eles? Ai como eu gostava! Suspirava Agrafítico nos seus pensamentos mais profundos e irrequietos.

De cada vez que Agrafítico inspirava o ar para deixar sair um suspiro, um repelão de vento empurrava a bola para o campo adversário e Raúl marcava golo. Braços no ar, gritava: Goooolooooooo! Feliz Raúl. Agrafítico sorridente apesar de triste e ansioso, sem nunca desistir de conquistar o coração de Raúl.

Em mais uma das noites longas, daquelas em que não tinha vontade de dormir e ia prolongando os trabalhos de casa pela noite dentro, Raúl ligou o “Magalhães”. Tinha deixado para tarde a pesquisa que o professor pedira para fazer, na internet, sobre o Monte de Santa. Luzia. Uma investigação para o novo projecto. Clicou no Google e escreveu “Monte de Santa Luzia”.

De repente, por entre as pesquisas distraídas, já mais atentas às janelas, leu um título que lhe despertou os sentidos: “monstro dos agrafos”.

O seu corpo tremeu da cabeça aos pés. Ficou arreliado de medo! Mudo! Não podia ser! Olhos arregalados, pregados no ecrã. Sem conseguir reagir. Respirou fundo. Esticou as mãos. Encostou as costas à parte de trás da cadeira. Estático. Apenas conseguiu articular:

- Mãe! Mãaaeeee! O monstro!

Foi mais forte a curiosidade e antes mesmo que a mãe respondesse, os seus dedos, mais rápidos que o seu raciocínio, deram início a uma dança frenética no teclado à procura de mais informações. Clica daqui, clica dali, clica dacolá! Abre uma janela e outra e ainda outra! E eis que lhe aparece a imagem do “Monstro dos Agrafos”. Tal e qual aquela que via nos seus pesadelos sobressaltados. Não podia ser! Boquiaberto, voltava a chamar:

- Mãe! Mãaaeeee! O moooooonstro!

- Filho! Filho! Raúl, tem calma! A mãe está aqui, então? Tentou acalmá-lo a mãe, já com os seus braços em volta do miúdo.

- É ele, mãe. É ele. É verdadeiro. Os monstros dos agrafos existem, mãe. Olha, diz aqui! No Monte de Santa Luzia!

No visor do computador, aparecia a imagem de um monstro branco, todo branco, com uns pêlos maiores, de cor cinzenta, a sobressair da brancura que lhe cobria a pele. Devia medir uns 3 metros de altura, os braços grossos e longos a tocarem o chão. O nariz largo e achatado tapava a boca, que nem parecia nada grande. Os olhos, vermelhos, muitos vivos. E embargados de ternura. Sim. Transmitia afabilidade aquele olhar encarnado. Até tinha um ar simpático aquele monstro dos agrafos. Raúl teve vontade de lhe tocar. De sentir como era. De falar com ele. De lhe perguntar porque lhe povoava os sonhos. Raúl estava surpreendido mas feliz. Afinal o pesadelo não mais seria um pesadelo. A partir daquela noite poderia dormir sem medo. E, no dia seguinte, contaria tudo aos colegas. Mal podia esperar. Descansado de tanta canseira, adormeceu de cansaço.

Já o sono ia profundo e eis que o misterioso espantaraúl que antes lhe sufocava a tranquilidade das noites, chegava agora para a embalar. Desta vez, Raúl deixou-se tocar pelos dedos delgados e frescos como o orvalho da manhã, e sorriu. Virou-se para o outro lado segurando na sua minúscula mão o único dedo de Agrafítico que conseguia agarrar: o mindinho. O pequeno gigante não cabia em si de alegria. Conseguiu espreitar pela janela, aberta de par em par, com os seus olhos de papoilas enormes em dia de primavera, e viu o sorriso estampado no rosto de Raúl, a dormir, sereno e profundo e sem sustos, sem choros, sem gritos. Ali se deixou ficar, vigilante, com os seus brancos dedos, mais brancos que o branco do algodão doce das Festas da Sra. da Agonia, enlaçados nos minúsculos e frágeis dedos de Raúl. E ali, do lado de fora da janela do quarto, acabou por adormecer.

Quando Agrafítico acordou, por fim, já o sol ia alto no céu sem nuvens e completamente a descoberto. Raúl, a mãe, o pai, e até os vizinhos, pasmados, observavam-no com uma daquelas curiosidades de quem vê coisas muito estranhas, coisas de espantar.

Já todos sabiam da antiga convivência tu-cá tu-lá entre humanos e agrafos, em tempos que já lá vão. Todos estavam admirados porque há muito que os monstros tinham sido dados como extintos. Há muito que ninguém falava deles. E todos se mostravam agora animados por saberem que estavam de volta.

Agrafítico e Raúl tornaram-se grandes amigos, os melhores amigos. Agrafítico brinca com as crianças da aldeia e faz parte da equipa de futebol da escola. É guarda-redes e nunca mais a equipa sofreu nenhum golo. A escola Pintor José de Brito está à frente do campeonato inter-escolar. Tem vencido todos os torneios.

Raúl é visita frequente da gruta dos agrafos e já conheceu toda a família. Estava lá no dia em que a mãe Agrafática e o pai Agrafótico anunciaram, diante de todo o grupo, com muita pompa e mais circunstância, que Agrafítico iria ter um irmão.

Na clareira mais luminosa da floresta, onde ao meio-dia em ponto, todos os dias, a luz do sol se desfaz em salpicos de ideias livres, o mais velho, Agrafeolítico, que tudo sabe, guiou o seu olhar de velas soltas pelas águas limpas da enseada. Com os olhos parados no exacto lugar onde o sal das ondas desmaia na espuma de algas e sargaços, com uma voz solene e arrastada, sílaba a sílaba, sentenciou:

- A-gra-fa-úl se-rá o no-me des-ta cri-na-ça! Em ho-me-na-gem à re-no-va-da es-pe-ran-ça que nos trou-xe o no-vo a-mi-go Raúl.

Agrafítico e Raúl ficaram alegres, nas nuvens. É lá que se encontram todos os finais de tarde, quando o sol está quase, quase a partir e a lua quase, quase a dizer boa noite. Ali se sentam, felizes e divertidos, com o olhar pousado na linha do horizonte, onde sol e mar se cruzam.

Despedem-se do astro-rei:

- Adeus Sol, até amanhã! Diz bom dia aos meninos do outro lado da terra.

Saúdam as estrelas do céu reluzente e dão as boas vindas à lua mais nova ou mais cheia, mais crescente ou mais minguante, mas sempre bem-disposta.

- Olá Lua, trazes bons sonhos?

Póvoa de Varzim, Abril de 2011

Manuela Costa Ribeiro



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